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28 junho, 2007

Trip


Sentei, num dia nada cálido. Conhaque. Música deprê com bastante gelo acompanhando a viagem pelo interior. Parei em pequenas estações – rodoviárias? – de vias plurais. Pensei no óbvio, no contra, no acaso e o que não se pensa, catatônico?, foi assim...

Uns zumbidos, umas cores, sons e sem odor. O que dizer do homem que não sente os odores? Tentei lembrar o último pensamento e resolvi escrever, mas o que? Começar pela primeira pessoa não foi o ideal, mas e se fosse?

A primeira linha, certamente, se em condições criativas, começaria com um verbo. E se na tentativa mudasse o tempo – relógios não o acompanhavam.

E mudou o tempo como se mudasse de qualquer coisa, por mais banal que fosse. Pensou em (vírgula ou dois pontos?) como muda de roupas. Mas seria essa a construção do óbvio, do clichê.

Continuou. Esqueceu-se do que havia se predestinado. E com todas as vulnerabilidades mórficas, sintáticas, ortográficas e gramaticais insistiu! Foram minutos quando se viu interrompido!

A presença do outro é sempre um bloqueio: primeiro, pela quebra do pensamento e do silêncio da casa vazia – um choque! Acordes... notas... samplers... vozes... dão continuidade à interrupção.

E se a viagem acabar? Afinal de contas é a última música. Se a condição – se, se, se, se – permite a depressão, quem trocará o CD? O deprimido? O estranho?

Mas...

Pensou que era louco, como se não bastasse. Involuntariamente hard. Um hard rock dá lugar ao indie, ao “indi”. Terá ele a certeza de estar escrevendo um diário? Quando ele se sentou? Provavelmente não.

Mas os tempos mudam. Ou ele muda o tempo? Pensou em como poderia não ter sido, mas mudou.

Uma quebra de raciocínio, uma seqüência irracional – onde está a lógica tão cabível nos momentos de sobriedade? Perguntou-se como poderia estar acontecendo tal (tal o quê)/ entre tantos porém – de pensamentos quando chegam as outras pessoa. Parou e não sabe se vai voltar. A inspiração. Essa lhe faltou? E a determinação. E a embriagues? Ou o quê? Os movimentos, novamente os movimentos, novamente o tempo, o tempo agora é outro. Mudou a música, clássico rocker, clássico viagem pelo interior, clássico maníaco depressivo, lisérgico das décadas anteriores.

E lembradaspessoascomopassardosmaisqueminúsculostempos. Pessoas certamente são a evolução, ou revolução de tudo. Pensou em listar, todas elas. E a ordem de importância. Todas eram, só variavam os níveis, mas o tempo, esse, independente de qualquer intempérie, sempre voltava, e voltava sem tempo, talvez porque eu p teria perdido.

Na balburdia, nas esbórnia, no escarcéu (eu sempre quis juntar essas três palavras e nunca tive êxito) desse tempo é que retorna ao conteúdo.

Quizás alguém descubra tal talento – seria isso mesmo? – pensava, e fazia isso tão obviamente autobiográfico – me reconhecerão mesmo que postumamente? Uma dúvida eterna, uma dádiva. Tudo por uma noite de entorpecentes. Seria verdade? Seria real? Creiamos que não (não entremos na qualidade de crônica!?).

Fragmentos, ah! Fragmentos. Lembrou enquanto escrevia ‘fragmentos’ que encontrou uma da família Fraga; desde sua infância não a via, e era linda apesar de sua agudez gritante contra a dele - surpreso, percebeu que ela se desmistificara, era agora apenas um rosto; perdeu-se dela a ingenuidade e beleza matutas. De repente, matuta e linda mas corrompida pelo capital, pela letra e pela luxúria.

Autobiográfico. Velho. Era isso. Estava velho. Fragmentou, na condição de tempo, a sua vida. Quebrados. Espaços que caberiam poesia, se desta não tivesse enjoado. As dores do mundo! Teriam lhe afetado? Saberia quem... ninguém saberia.

Fragmentos, ah! os fragmentos!

Constituição, era isso, a reconstituição do que deveria, ou era, ou se tornava, ou estava se tornando, ou tantos outros ‘ous’, ser reformatado. Pensou na razão e na razão de ter usado a palavra ‘reformatado’. Pois onde se encontrava no tempo, no seu tempo, o tempo?

Levava essa discussão consigo psicofisicamente. Tempo verbal, tempo modal, tempo de amar e tantos outros tempos – quais deles escolher? quais deles se envolver? quais deles ser realmente o verdadeiro tempo?

Angustiado com as condições, conectivos, aditivos e justificativas, se esquecia do próprio texto – o simples, sem firulas. Quando pensou ter acabado – tinha apenas começado – percebeu o quanto se charfundara, atolava, metia-se, envolvia-se num mundo de insanidades saudáveis e inaceitáveis como as grandes paroxítonas e proparoxítonas da corrente oração (ordinada, subordinada, ordinária?).

Realmente o tempo me controlava e advertia: onde está Guimarães Rosa ou de Melo Neto? Respondia um silencia... e quando tornou-se som – desafinado.

O tempo! o tempo!

Uma linha! uma seqüência de pensamentos – atemporal, imoral, imortal – desavisados. “This is the end, my only friend, the end”. Morisson me convidou ao caos e lá…

Num tempo, numa meia sola de tempo, se metamorfoseou, como uma borboleta.

Repetiu, como costumeiro, a palavra indubitavelmente. E indubitavelmente.

garota


Esquadrinhava uma
garota,
ela
tinha batom e um
gato preto.
______________
a
cada
hora,
uma
garota.
______________
ela não
tem mais batom!

O gerúndio longínquo


Pensou num gerúndio longínquo naquele momento de vida. Transcorria seus valores e comportamentos numa trilha sem destino. Era rápida e lenta; oscilava nesse momento de retardo e ligeiro, mas o gerúndio incongruia nesses intervalos. E inconguia... vagando... divagando... pensando...bufando qualquer tolice; dançando qualquer valsa, balançando qualquer movimento. Andando... caminhando qualquer caminho. Incongruindo.

Incongruindo do que?

Tragou seu primeiro e guloso e fumegante gole de café. Diluiu suas primeiras reflexões do dia, que sempre vinha acompanhada de mau-humor, nessa pausa longa. A essa altura a dor de cabeça era menor e também o seu dispor com o próximo. Seria aceitável um sorriso de canto de boca.

Duas! Já era a quarta ou quinta. Seis! meia garrafa de café.

Eram dois... eram dois... tudo vinha em par! O café e o copo. O sol e o dia. A mão e sua símea. O abre e fecha. Tudo vinha em par, tudo! Tudo vinha em par senão o seu par.

Seu par era soberana. Atravessava a rua e tinha medo do sol. Parava. Não ela. Ela parava o sol. Ela descia o sol à sua cama e brilhava, ofuscando-o. Era dia e ela era o sol. Ela era Deus mandando que o sol se assentasse.

Ele olhou a rua e a menina soberana que a atravessava.

E só olhou. E queria o próximo dia, quando ela se cansasse e o sol dormisse. Era cedo. Era tarde? Ela passou. E ele se passou.

Acordou. Pausou num gerúndio duradouro. Não tinha café nem o seu forçado e cínico sorriso de canto de boca. Foi ver a rua e soberana a menina ordenava que o sol descesse e seu coração parasse. Não tinha café nem menina.

Agora era noite e tentava achar o sol que desceu corando a maçã alvíssima e sardenta num gole tragoso de conhaque. Não encontrava o brilho nem a graça enleante. Não encontrava os pontos escuros, porém luminosos, nem a seda negra transfigurada cabelo, nem um olhar cativo de jaboticaba, nem um sibilado, nem uma curva sinuosa, nem um som agudo e quebradiço de menina sorrindo sua graça.

Eram dois! Três, cinco... meia garrafa de conhaque. Envelheceu sua beleza no torpor. Marcou no seu rosto linhas decaídas. Marcou como se ele fosse o cinderelo aguardando sua princesa chegar cavalgando e galgando seu amor num grande e robusto cavalo branco de conto de fadas. Um cinderelo ao avesso. Um cinderelo sem sua graça e traje de gala. Um cinderelo sem sua torre – enclausurado nas entranhas de sua masmorra.

Parou num gerúndio longo... mas tudo vinha em par – agora por efeito borracho. Dois copos. Dois cinzeiros. Dois cigarros soltando suas lufadas bem tragadas. Dois garçons esperando as duas próximas doses. Tudo vinha em par, senão o seu par.

Um gerúndio longo e mais café. E a menina continuava arrebatando o sol. Um gerúndio longo e café, e café, e café. Cansado do café foi a rua olhar sua menina atravessa-la e imperativamente fazer o sol descer à sua cama. Mas vieram as nuvens que fizeram gotejar pingos pesados e molhados sobra a seda negra e curta. A seda amarrotada e ensopada que balouçava num movimento tardio e fragmentado, formando linhas curvilíneas e montanhas contra o desenho da chuva que caía densa em seus tons de cinza e azul-royal. Corria desenhando tais formas, corria em busca de abrigo. E se estivesse na condição de guarda, estaria lá, estendido com seu guarda-chuva, esperando a menina e esperando a chuva passar. A chuva não passava e passava a menina. Quanto quis que seus braços se abrissem numa grande copa protetora, mas seu estilo cinderelo obrigou-o a se sentar na escadaria, de pé estendido esperando seu sapato. Sua menina e sua seda não vieram mais uma vez.

Pausou num gerúndio longo. E não veio o café. O mau-humor. Nem a menina descendo o sol à sua cama.

(Sô)frego

Há quem sofra para me entender
Há quem sofra por me entender
Há quem sofra por sofrer
Há quem me entenda sem sofrer
Há quem me entenda por sofrer
Há quem sofra por sofrer
Há quem me sofra sem poder
Há quem me sofra por poder
Há quem sofra o poder
Há quem possa o sofrer
Sofrer por poder... apenas sofrer.

Pretérito mais-que-imperfeito

Vivi o presente mais que perfeito (viu?)
Tú, anunciando a primeira estrela da manhã
sorrindo elegantemente teu brilho dourado
lambendo lânguidamente o ar da minha alma
beijando docemente o mel dos meus desejos
suprindo qualquer sonho, senão o teu
desmoronando os muros de pedra e
descobrindo meias dúzias de onze-horas
minha estrela do presente mais
que perfeito
você murchou o púrpura do meu correr
e afundou minh'alma num barril de cachaça
meu tão ex-amor
você soprou o vento ruim e se
acabou com os meus tragos drogados
anunciando a primeira estrela da noite
tão fria, bêbada e lamuriante
meu tão ex-amor
tú virou o pretério mais-que-imperfeito.

Bang, bang!

só acaba quando acabar
porque viver não é cena de cinema
nem romance barato de prateleira
só acaba quando acabar
e depois do fim

o teu nome de estrela subindo nos créditos
e teu amor para o meu impresso num prólogo
mas a vida não é cinema
e não vão ler nós dois na próxima página virada

cansei de ser mocinho sem donzela
quero renascer herói no episódio 2
só acaba quando acabar

"Crave" de Sol

Tentar chorar é ceder à tua dor
e fingir o não é tê-la longe de mim;
as lágrimas me lambem os olhos
e lavam minh'alma em busca da tua,
ansiando qualque sopro ou notícia teus.
Me fecho no tempo
e viajo num instante eterno
de noites insones.
Mas você é só um prelúdio sem fim,
me deixa sonhar... e só sonhar.

Destinos

E o menino desce a rua
a água desce a rua
a própria rua desce em si
desce em si mesma
desce para lembrar
que já a desceu
e que não pode voltar

Chilreia

Duas frentes e um olhar -
gêmeo.
Duas core e um corpo -
nú.
Ela em branco, eu
em negro;
ela chamuscada -
em negro - de mim;
meus olhos lavados -
do branco - dela.
Um passáro cantou!

26 junho, 2007

Talvez. Talvez? Talvez!

Bem! eu acho... (pensou num dos seus intervalos de talvez). Mas como estar bem numa condição desconhecida? Não ter certeza dos seus sentimentos era concebido como regra. E assim, continuou sua divagação, embora conversação, com a dona que se precipitava na mesma confusão. Lembrou que numa dessas passagens zapeadas pela tv, ouviu dizer da dependência química do estado de espírito.

Fragmentado. Pensava assim as suas idéias, as palavras e os sentimentos, outrora pueril e romântico, hoje: urbano, rápido e vulgar.

Maduro?

Ela disse que passava para vê-lo. Ele nem notou e esqueceu de mais alguns dos seus compromissos. Um casal de amigos lhe trouxe um presente. Tentou se entorpecer dele, mas já não lhe provocava a mesma sensação de antes, não se permitia, talvez - senão a boca que secava e amargava. Viajou numa trilha amorronzada e amarrotada de formigas (sempre o fazia) - com ou sem seus tragos queimados. Ressecou-lhe a garganta e mais uma vez a sensação de estar nos intervalos de talvez.

Talvez. Talvez? Talvez fosse desconhecido por ele. Voltou ao seu encontro despropositado - nenhum dos que assumira ou tivesse tentado fazê-lo. Seu casal(?) de amigos conversava, bebiam na sala alta enquanto cá, na antecessora, ele escutava qualquer coisa de rock clássico. Estava vazia, poucos móveis; meia-luz, débil; umas pontas de cigarro, outras não; meia taça de vinho, engordurada; sapatos, poeira e a trilha de formigas tracejando seu caminho com sua carga indecifravel.

Viu emoldurada a arte de sua nova tempestade platônica. Estou bem? Eu acho... agora mais desconfiado do que antes. E tragou goles rápidos e volumosos do seu vinho engordurado. Precisava encher seu copo. E a garrafa estava vazia. E o casal(?) na sala alta? Foi e não se demorou e da boca feminina da sala alta, ouviu: profundo! Pensou, pois só pensava enquanto esvaziava a alma e embriagava o corpo, num motivo sexual, depois na sua natureza humana.

Surpreendeu-se com sua capacidade veloz de raciocínio para as suas "intressências". Pro resto, era lento e disperso, como não se incomodasse com a vulgaridade simplória do tempo alheio nem de um tempo imposto.

Ouviu tês tiros e imaginou: estou bem? acho que sim... mas alguém não está. Tropeçou na idéia de ser o outro ele, não o igual ao do momento, mas o outro ele. Seria o outro ele lírico? o outro ele poético? ou o outro ele imaturo e inconsequente?

O ele de agora se negou a admitir sua outra parte, a sua parte disperdiçada.

A pintura, indefinida no espaço, e o outro casal (?) continuavam no seu tempo. O ele, e o outro ele, não!

No dia em que a sintaxe não concordou

No dia em que a sintaxe não concordou. Ela acordou dislexa, trocando umas palavras tolas. Ela não sabia mais quem era e se confundia com a sua já majestada amiga comum. Tinham tanta concordância! mas agora se embaralhavam em alguns equívocos e desatinos. Não mais se reconheciam, talvez a dúvida ou um bloqueio de sinapses. Pra onde elas foram e que rumo tomaram? Será que seguirão o mesmo rio? E se diferentes, oxalá desaguem no mesmo mar, ao menos de prosa, primosa, formosa 'sintaxidade' novamente.
Volta sintaxe, desenrola, concorda. Pega essa tua forma. Forma, forma!

21 junho, 2007

Café


E na ansiedade de provar do melhor sabor, esperou toda uma safra; até que as minúsculas frutas alcançassem o bordô mais intenso e se transformassem, depois, num volumoso conteúdo preto-amarronzado. Esperou esse momento, da fruta ao volume, do volume ao sabor; esperou para segurar sua xícara fumegante, evaporando suas fumaças rodopiantes, até a iminência do primeiro gole. Salivaria gotinhas quentes e saborosas como forma de amor.

11 junho, 2007

Cartaria

Toda carta deveria ser logo postada. Será que elas chegam às quartas? E o pior de tudo é que as quartas nunca chegam; se chegam, encontro empoeirada minha caixa metalizada recebedora de notícias. Mandei dizer para uma moça que não avissasse sobre elas, mas a minha ansiedade atropela qualquer carta em qualquer desses dias de meio-de-semana.

Um dia escrevi cartas, elas eram longas e em papéis azuis, eram tão mórficas! na sua concepção! Ainda as continuo escrevendo... mas elas nem chegam ao papel, são tão imaginárias, agora nos seus montes verde-azulados. Prefiro esperar! Todos esses dias.

Canso de esperar as moças ou moços em uniforme azul e amarelo tão bandeiroso de nossa pátria, trazendo ouros e céus. Eles vêm em zigue-zague entre os números da rua. Espero alcançarem o 77, mas param no 71. Seguem duas casas abandonadas, e a 75 só recebe correspondências no fim de cada mês - acredito que as contas. Aí, eles se vão...

Toda postagem deveria ser anunciada como de propósito. Será?

Eu espero.

Sempre quis ser carteiro.

29 maio, 2007

(DES{M[ANTE]-LO}!) entre parêntesis, chaves e cochetes...


Desses castelos que construo e desmantelo o tempo todo. Nem são de areia. Castelos tortos, mórficos, antologicos? Hã? Tão lógico! Esses castelos ora sem trilha, sem rio, sem ponte e sem porta - ora não. Colunas, lacunas, chanfruras, firulas. Sem base e com alicerce, seu reverso, ante-verso - com travessão - e atravesso. Esses castelos secos d'água e de verbos molhados, verborrágicos. Casteleira, costumeira... desmantelo, "remantelo". Interjeição é tão tão, senão exclamação? e interrogação!

26 maio, 2007

Entrada só para raros


E quando ouvi: "Todos vocês estão automaticamente em extinção, porque só existe cada um de vocês!". Me eternizei raro!

O anjo mais velho (TM)

"O dia mente a cor da noite
E o diamante a cor dos olhos
Os olhos mentem dia e noite a dor da gente"

Enquanto houver você do outro lado
Aqui do outro eu consigo me orientar
A cena repete a cena se inverte
Enchendo a minh'alma d'aquilo que outrora eu deixei de acreditar

Tua palavra, tua história
Tua verdade fazendo escola
E tua ausência fazendo silêncio em todo lugar

Metade de mim
Agora é assim
De um lado a poesia, o verbo, a saudade
Do outro a luta, a força e a coragem pra chegar no fim
E o fim é belo incerto... depende de como você vê
O novo, o credo, a fé que você deposita em você e só

Só enquanto eu respirar
Vou me lembrar de você
Só enquanto eu respirar

17 abril, 2007

Umas dessas marolas-marolas

vêm e vão
são marolas
intermitentes
obscuras e clarevidentes
vêm e vão
são obtusas
vêm e vão
marolando...
marolando...

16 abril, 2007

Nigrum borboletas

elas vão e vêm;
vão e vêm...
saem negras de suas crisálidas emarinhadas...
voltam noturnas...
elas vão e vêm...
[parecem bandos e cíclicas]
é tudo que se sabe!

12 março, 2007

Eco e Narciso

Sou Eco e Narciso
E onde está minha Nêmesis?
Sou palavra e imagem
Mais palavra... palavra... palavra...
Nêmesis? Por quê me deixas?
Há alguém aqui?
Aqui!
E o que vem?
Hein... hein... hein...

09 fevereiro, 2007

Meu Anjo



24 janeiro, 2007

O gato (aurora lunar)



A lua vigorosa e fumegante
Ardia em seu crepúsculo dourado
Laçando por entre feixes bem amarrados,
Na alta floresta de puros eucaliptos, luzes cintilantes

Vivendo tudo aquilo, as luzes e o crepúsculo
Esgueirava-se pela floresta
um gato tão pardo quanto a noite

Noite e gato fizeram-se um só
Negros como um poço sem fim,
Ou insólito como um campo espacial

Exceto pelos olhos do gato
Que gritavam na escuridão, fumegantes como a lua
Naquela noite houve três luas,
Duas, eram tangíveis

19 janeiro, 2007

Poesia baiana





Desilusão

Lilases, de Van Gogh.

Era todo desilusão, e isso lhe enfraquecia; ele nunca esteve mais vulnerável do que agora, mais oscilante do que agora. Ele amou todo o seu amor, incondicionalmente, intensamente, irrompendo em desatino e inconseqüência, como se atirasse de um penhasco sem fim, cairia por uma eternidade, e por fim, quando encontrasse o chão não morreria, pois lhe parecia demasiadamente piegas morrer por amor, morrer por paixão. Depois de uma eternidade encontrou o chão identificável do abismo (ora quente, ora frio), e dissolveu-se em dor, a dor que jamais suportaria (pensou antes de se atirar) se não encontrasse o seu chão sem suas penas e lilases.

A dor lhe era absurdamente incômoda, como gelo que se espalha num corpo vazio com a incumbência de petrificar-lhe a alma, fazendo-a tão pesada, incapacitando-a de subir e vagar, e ela, mais pesada, de forma que nunca fora antes, pareceu congelar-se apenas para que ele sentisse a dor de se entregar a uma paixão, jogando-se, como se joga de um abismo, e não encontrar as suas penas e lilases lá no fundo.

A dor ultrapassava a barreira do coração, que agora estava fino e quebradiço como pó de arroz, e invadia o seu corpo com sensações tão dolorosas quanto à dos seus sentimentos. A cabeça comprimia-se mais apertada entre o crânio, irrigando o seu sangue para a superfície do seu corpo, intumescendo a sua pele em tons de vermelho e roxo. Os membros e o dorso estavam moídos como cana de engenho.Seus olhos gritavam vermelhos entre dois círculos negros. Quando encontrou o chão do abismo sem as suas penas e lilases, converteu esse num lago, que poderia se chamar o lago do desespero (se esse não se tornasse mar), de lágrimas revoltas que não assimilavam a ausência dos lilases. E os círculos negros dos olhos, encobrindo os tons de vermelho e de roxo denunciavam as suas noites sem dormir, as suas noites de prantos e alucinações.

Deitado no chão, sem sua cama macia e colorida, sufocava-se, afogava-se na relutância das lágrimas e acovardava-se com a escuridão das aureolas negras em volta dos olhos. Não se mexia, e tentava imaginar, não fosse a dor do peito e do cérebro comprimido entre o crânio, como seria se não se jogasse, como seria se tivesse hesitado a beira do penhasco e fosse covarde como por tempos pensou em não ser. Talvez se tivesse sido dominado pelo desejo do intangível, sua dor seria diferente, menos sarçosa. Pois com os desejos intangíveis não se sofre tanto, e existe uma relação de respeito – “não te dou, mas conforta-te com a idéia de ter”, e até esse momento ele convivia harmoniosamente com o desejo, e não com a perca, não com a resolução final e o abismo sem suas penas e lilases.

Soleira duvidosa

Porta della notte, de Angello Mazzolene

Estava parado no limiar da soleira, deu um mergulho na sua vida, avaliou nuns segundos etéreos quais das chances escolheria para si. A penosa decisão dividia-se em duas estradas, uma ardilosa, outra ainda mais, distintas, como é a noite para o dia, breu e luzidio, mas qual decidir. Hesitou (enquanto mergulhava) Se o caminho mais curto lhe fosse conveniente, se abrisse àquela porta, bastante familiar, a porta que lhe soprou a vida, sabia que voltaria a enfrentar os sus antigos medos, recomeçar, recomeçar o que conhecia muito bem, a tirania, a hostilidade, a incongruência, a enfermidade gorgolejante; mas o que haveria de tão tenebroso na trivial tarefa de abrir a porta de sua própria casa. Poderia não faze-lo, daria meia-volta e sem deixar rastros sacudir a poeira dos sapatos gastos e tentar a fuga, a fuga para um mundo sem as mesmas qualidades do qual já habitava. Despertaria num mundo novo, sem fronteiras, sem limites, sem soleiras duvidosas.


Mas por que desistir de entrar, a casa que o abrigou até hoje, acolheu-o, protegeu-o, proveu-o, porque abandonar quem lhe soprou a vida, quem num momento de intraduzível prazer jorrou-lhe, como água corrente no leito de um rio, a vida. Porque abandonar o “porto seguro” (a tirania, ah... a tirania). Como sentimentos tão díspares fazer-lhe-iam tomar difícil decisão. Amor e ódio. Como poderia odiar o próprio pai amando-lhe tanto (a tirania), amor sob uma forma de adoração, admiração intransponível.

Mas se saísse, se desse meia-volta, abandonasse sua crisálida, voasse, voasse para bem longe, longe da hostilidade, longe da tirania, longe da incongruência suplicante, se voasse por pastos ora verdes, ora ocres, inconseqüentemente, à espera do intangível, à mercê do intangível, todavia longe do medo, longe das velhas sensações que o dominavam, não teria a mesma segurança (deveria se importar?), seria livre (até quando?), sobretudo livre. Suportaria os gritos desesperados: e o amor, e o amor...

Abriria, como sempre fez, a porta, e lá estaria a hostilidade e tirania personificadas em forma de pai, censurando-o, elogiando-o, suplicando-lhe amor, suplicando-lhe uma palavra terna, um simples eu te amo, você é a minha vida, eu sou criador, você criatura, é meu, me pertence e ninguém mais; seus olhos gritariam isso. Ele não falaria, era uma pedra que sofria as intempéries do tempo, da fugacidade, gasta, velha, sofrida, suplicando amor, sabia que era amado, porém, precisava de afirmação e rogava por tal, chorava todo o seu inverno, sua chuva agridoce suplicando amor.

Fugiria, deixaria no primeiro ímpeto o seu velho mundo, enfrentaria novas hostes que não suplicariam amor. Seria ferido, ganharia cicatrizes mais tênues, mais negras.

Oscilava. Quais dos caminhos escolher. A hostilidade nociva, ou a hostilidade que na mesma proporção que fere, beija, como um rio beija a sua margem, languidamente, levemente doce.

Fugiria, sim, isso lhe parecia bem obstinado. A fuga fazia parte de si, a fuga almejada. Fugiria de todas as hostilidades, dos medos, do amor. Voltou do seu mergulho. Abriu a porta, atirou-se, estava escuro como sempre, o caminho de casa. Alguém chamou o elevador e ele não veio.

Ofélia

Assim como Ofélia, seu cenho refletiu tristemente na água. Refletiu sua dor nas águas correntes de um velho rio pardacento. A sua imagem fora carregada de onde se originou, junto com ela, uma lágrima de sangue, que transformou a densidade marrom do rio em um volume escarlate.

Lá adiante, na desembocadura, explodia o crepúsculo vespertino tingindo o céu de laranja. O mar imensamente azul abrigava cardumes multicoloridos que atiravam júbilos feixes de amarelo-lilases contra o crepúsculo que tinha como companhia o chilrear alegre dos pássaros brancos.

O rio corria veloz como um golfinho em direção ao mar. Em pouco tempo o seu leito encarnecido alçaria a grandiosidade do mar azul, o crepúsculo e os pássaros.

Na praia, passeava uma criatura esplêndida.

O mar envenenou-se do rio, suas águas se misturaram e adquiriram um tom de roxo, e depois púrpura e depois de um azul tão intenso que a imagem do homem chorando sua dor saltou da água para o crepúsculo, que outrora irradiava em felicidade.

Catando conchas e pedras na areia mais branca imaginável da praia, até mais branca que os pássaros cantores, uma jovem mulher, de uma palidez robusta, cabelos negros e esvoaçantes como uma brisa, tomou-se pela imagem entristecedora. Sentiu compaixão e condescendência daquela criatura e fez da dor da imagem a sua própria, e franziu o seu cenho assim como o homem choroso o fez.

Sentiu-se ligada ao homem de alguma forma. Quando o avistou, já sem esperanças, pois era muito claro perceber isso, em seus olhos de desdenho, na insipidez da sua cor, nas rugas que formavam caminhos de lamúria em sua tez. Carecia de compaixão, decerto não era feliz, decerto não possuía um amor.

A mulher em seu desenho lapidado, pois não haveria de existir criatura tão formosa quanto ela, soube desde o primeiro instante o que aconteceria, e atormentou-se, e chorou do mesmo sangue, e sentiu a mesma dor, e pediu compaixão e implorou condescendência do seu amor por ela, e não perdeu as esperanças mesmo sabendo que o seu suposto amante teria se entregado ao infortúnio.

Quando a primeira gota do mel coronariamente vermelho desprendeu-se dos seus olhos, os pássaros de chilrear melodioso e não tão brancos quanto a areia da praia, e os cardumes que incendiavam em sua própria luz, e o crepúsculo que transbordava em energia, entristeceu-se, dessaturou, tudo foi indiscutivelmente dissolvido por um tom acinzentado, exceto o encarnecido do sangue, que beijadas pelas ondas cinzas do mar transferiu sua cor. Agora o mar era vermelho, o mar que era azul. E o rio tingido de vermelho desembocava, o rio que outrora fora pardacento.

Soube quando derramou seu sangue que o homem tinha se atirado contra o rio, era como se o seu sangue fosse o caminho dele para o infortúnio, isso a preencheu amargamente de fel, e fê-la sentir o gosto de sua decadência na boca. Sabia, mas não compreendia porque razão amava-o e que por toda a vida esperou o momento do encontro. Sabia também que ele desistiu do seu amor, que não suportou esperar e atirou-se ao rio, e a mulher, que lamentava tudo isso, foi calcada por uma dor que não se assemelhava ao sentimento do mundo.

O homem foi tomado pela correnteza do rio, apático, não auferia nenhuma reação, estava completamente envolto, submerso. Vez por outra, a virulenta correnteza do rio na sua mais intensa vermelhidão transportava-o para a sua superfície, quando podia respirar, mas esse ignorava a circunstância e inerte poupava qualquer esforço.

A amante sobressaltou-se, como num estalido, e atirou-se ao mar acreditando sofregamente que salvaria seu amado antes que esse alcançasse as águas do mar, pois essas, revolviam-se enfurecidas, as ondas infestadas de violência varriam as conchas e pedras da beira-mar. E a mulher, ou a amante, nadava exaustivamente - imaginava ser ela mesma um peixe esguio, que num leve movimento de barbatanas movia-se de um ponto a outro sem dificuldades, ou uma embarcação, que apesar do agito do mar atravessava-o sem o menor esforço.

Nadava, nadava, nadava relutantemente; nadou aproximadamente meia-hora e percorreu uma distância inferior a quinhentos metros. Estava obstinada a salvar a sua metade perdida que precipitadamente atirou-se às profundezas do rio sem a esperança de completar-se.



Um turbilhão de água, como se o mar possuísse uma rolha, atingiu a mulher que agora submergiu e com toda a sua força tentou voltar à superfície, lutou ali por mais de meia-hora, que lhe pareceu uma eternidade, e quando conseguiu enfim ver o crepúsculo dessaturado, encontrou morto o seu amado.

Chorou toda a sua mágoa e fracasso. Chorou até o mar - que um dia encobria-se e intumescia-se de azul, que abrigava cardumes multicoloridos e peixes voadores, acompanhados do brilho esplêndido da explosão crepuscular e dos cantos dos pássaros chilreantes - tornar-se deserto. E até o seu sangue que esvaia como uma cachoeira tornar-se rocha, e até tudo se dissolver completamente estando apenas no mundo ela e o seu amante morto envolto em seus braços.



O tempo

Dali

Era uma tarde fria e cinzenta de inverno, absurdamente mórbida, se assim possa existir. Mergulhado na mais completa solidão, como uma jubilosa estrela esquecida, ele permanecia parado, letárgico como nunca, olhando vago pela janela de um velho sobrado. Via pássaros, sim! eram pombos, inconvenientes, projetando as cabeças para frente repetitivamente, catando migalhas. Duvidasse houvera outra tarde tão triste quanto aquela.

Provido da mais crua realidade, resumia-se a sua própria insignificância, estava fadado àquilo. Sem amigos ou qualquer outra forma de vida - mesmo um gatinho manhoso, ideal para indivíduos sozinhos – que lhe fizesse sentido para continuar a jornada angustiante, era tolhido por pensamentos devastadores, que o levariam para o precipício.


Ainda naquela mesma tarde, que tarde obscura, como era odiosa. O homem no seu estado mais estático observando os pássaros vívidos, porém não mais alegres, encheu-se do pulmão com o ar quente dos seus cigarros que dia após dia fazia-lhe percorrer dois quarteirões. O cômodo que ocupava invadiu-se de uma nuvem espessa provocada pelos seus tragos ansiosos, ele, que exalava rabugice, barrufava os seus cálidos cigarros que aqueciam-lhe naquele tempo ártico, porém, inúteis de lhe oferecer afago. O seu semblante revelava isso.

De perfil, entre móveis de maneira nobre, quem sabe nogueira ou cedro, antíquos, imantados sob uma fina camada de poeira, num âmbito pouco iluminado, com as sombras distorcidas pela luz deficiente e aquém de ser uma mobília alegre e vivaz, podia-se ver aquele homem de rosto anguloso, nariz reto, irritante, incapaz de matar um inseto se tal tarefa lhe fosse incumbida. Estava ali, inerte, diante de sua covardia.

Fatalmente já houveram tardes de domingo bem mais cheias de vida que aquela, de um azul encantador no céu contrastando com um sol imensamente amarelo, uma pintura, uma pincelada primaz. E assim, na insipidez daquele dia onde as famílias recolhiam-se diante do frio, poucos se atreveriam a vagar pela cidade. Vez por outra, em longos intervalos de tempo, os pombos da praça que davam vista a janela do velho sobrado afugentavam-se pelos transeuntes despreocupados. O dia assumira a qualidade do tempo, apático, dessaturado. E assim também o fizera o homem.

Contudo, sabia-se que em outro tempo fora feliz, porque aquela sombra não teria nascido com ele, não fazia parte de si, tinha que ser, devia ser assim com todos e certamente o seria com aquele homem. O que teria lhe acontecido, o que já teria vivido, sim, pois não era jovem o suficiente para privar-se de experiências, era um homem de meia idade, já vivera conflitos, decepções decerto, amores, percas. Poderia um dia estar reunido entre amigos e triunfado intensamente de amor fraternal, ouvido música antiga, bebido um vinho de uma garrafa empoeirada, compartilhado as lágrimas lambendo seus rostos translúcidos de felicidade incontida. Teria sido um jovem obstinado, embalado pelo vento, que sabia degustar o sabor dos frutos, dos vinhos, correndo, atropelando-se, absorvido por emoções magníficas. E agora, mergulhado nesse breu, nas profundezas dessa floresta morta, encrustada de árvores espinhosas e todo tipo de animais noturnos, onde nunca floresceriam as mesmas emoções que o acompanhavam na mocidade.

De repente, a chuva, uma brusca queda de água do céu cinzento, um temporal, uma tempestade. Os pombos da praça escondiam-se debaixo das marquises enquanto aquelas nuvens se desmanchavam e lavavam a rua. O homem foi absorvido por aquele momento, como se a chuva estivesse lavando-lhe a alma, estivesse lavando a si mesmo, e assim criara-se uma nuvem em seus olhos também, desmanchara-se em lágrimas, pois lembrava da sua infância, correndo na chuva, as poças de lama, os pequenos riachos à beira da calçada, o cheiro de terra molhado, tudo aquilo lhe transportava para uma atmosfera que jamais voltaria, a época em que fora mais feliz, porque é assim, na infância é tudo mais claro, simples, divertido, contenta-se com pouco, é tudo mais bonito, o orvalho dominando a sebe, o canto dos pássaros, o pôr do sol, o doce mais doce, as traquinagens, os devaneios.

Ele sucumbia com a chuva, sabia que não podia recuperar aquilo, lembrava da sua vida de agora, lembrava que não era feliz, que não tinha mais amigos, que era frio, que era mole como aquela água, que era fraco. Sabia que o mundo não fazia parte dele, ou que ele não pertencia aquele mundo, era difícil de compreender, de conceber tais questões, pois ele mesmo não sabia o que pensar, não tinha se encontrado, nem mesmo sabia porque vivia daquele modo. Esquecera-se, fazia tanto tempo que se quer ocorria-lhe o motivo, a razão de penar daquela forma, encolher, diminuir-se ao longo dos tempos, não, não sabia.

Talvez tivesse perdido o rumo - como barco em tempestade, os lemes se quebraram, a popa afundava, o marinheiro desesperando-se (afundou! afundou!) e atirando-se ao mar sem pensar, sabendo que ninguém poderia imiscuir-se, que ninguém poderia salva-lo – e se entregado às drogas do mundo, à covardia, ao medo, contentando-se com o que a vida lhe oferecia, perdera a ambição, perdera aquele desatino que o embalava, que soprava como vento forte, um ciclone, uma varredura pelos seus desejos, perdera sua austeridade, sua jactância, seus adjetivos superlativos da juventude, perdera aquilo tudo, rendeu-se, rendeu-se sem questionamentos, tão facilmente, despropositadamente, rendeu-se porque foi fraco, porque não soubera conduzir a sua vida, rendeu-se como aquele dia foi rendido pelo frio, pelo cinza, sem lutar, sem lutar.

E a chuva cessou-se tão repentinamente como iniciara-se, e o homem que relembrava a sua felicidade, tentando montar as peças que o teriam levado àquele estado, como se monta um quebra-cabeças, tentando descobrir porque abandonara tudo e emaranhara-se na sombra, também encerrou-se, secou as lágrimas como as águas secaram do céu. E os pássaros saíram debaixo das marquises e voaram, voaram para onde lhes eram mais conveniente, à procura de um local seco, quente e voando refletiam nas poças formadas pela água da chuva. E a vidraça da janela também refletia o homem.

A tregédia da borboleta

foto: Cristina Oliveira


[O HOMEM]

Censurou-se no primeiro instante. Era demasiado lúgubre, mas não se importou. Sentiu-se bem, pela primeira vez, com um acontecimento funesto. Interpretou aquele momento como prazeroso, embora a morte tivesse sido o seu principal motivo, embriagou-se do seu cheiro doce e fresco.

Aturdido num turbilhão de pensamentos, aliviou-se. O barulho emudeceu. As pessoas fizeram-se na qualidade de estátuas. O ar congelou. A luz abrandou e o tempo fora interrompido, imortalizado. Tudo foi dissolvido pelo mais absurdo silêncio e invadido por lufadas de incenso fresco, doce e vivo. O ambiente que antes era caos fez-se na fugacidade do momento, insólito e estático, como se tudo fosse inanimado, exceto pela vida que sucumbiu e o homem que prazerosamente provou do seu gosto.


[A BORBOLETA]

Voava lindamente, esplendorosamente branca, cortando o ar, como remo que corta as águas
d'um rio translúcido, vagaroso... frouxo... A sua vivacidade intumesceu suas asas (branquíssimas como só as de borboletas podem ser) de sangue, e foi conduzida para o seu momento de resignação.


[A TRAGÉDIA]

A tragédia da borboleta embelezou a vida do homem, que no primeiro momento censurou-se, e um segundo depois voltou a si.

O som esgueirou-se por todo o ambiente, a luz feriu-lhe o olho, as pessoas voltaram a se agitar. Voltou viver isso tudo novamente, sentiu a brisa do ventilador atrás de si, mas essa já não soprava mais fresca.

A dor de existir

Pintura de Korneev Arkadiy

Podia ser quem quisesse. Um poeta apaixonado, que escrevia por horas a fio sobre sua amada, uma criança que falava e agia debilmente, um homem que se atazanava em seus próprios conflitos, a própria elegância e cortesia, ou ainda um fracasso. Ele só não podia ser uma só coisa interinamente. Oscilava como o tempo, que em suas frações menores que milésimos, mais infames que milésimos, faz um camaleão incorporar todas as cores do mundo, o vento mudar de direção, e um pensamento vagar de um canto a outro do cérebro.

Notava-se um distúrbio no homem, sim, tinha caráter, sim, era digno, mas algo o afetava. Sofria com tamanha facilidade, sensibilizava-se com quase tudo, que por qualquer motivo aparentemente tolo, como o desabrochar de um girassol, provocava-lhe lágrimas; embora por instantes se fizesse sisudo e severo. Tinha bom senso de humor, ótimo senso de humor, podia irradiar vendo um cachorrinho auferir-lhe gracejos, mas de vez por outra, dominado pelo tempo e suas conseqüências, no meio de um largo sorriso suas maçãs se lavavam de um líquido choroso, que, todavia não eram alegres, não, não eram alegres. Tinha um distúrbio e o tempo evidenciava-o cada vez mais.

Mesmo assim, com toda a crise, com todas as oscilações, podia ser quem quisesse, o poeta e o menino, a elegância e o fracasso, e uma atmosfera de miasma se instalava, contaminando tudo à sua volta, e para tanto só bastava-lhe imaginar. E ele, pobre homem, o homem que podia ser quem quisesse, sofria com as suas oscilações. Porque no fundo do seu âmago não suportava ser quem era, e com um suspiro enfadonho, e um pesar no semblante, com os cantos tortos da boca, desabafava para si mesmo e para os móveis encobertos de sombra como ele:

- Por que não hei de ser normal, por que não ignorar metade das coisas que se passam, e só se preocupar verdadeiramente com pelo menos dez por cento da outra metade?

Dizia isso como se fosse para diminuir a sua carga, mas só conseguia perceber o quanto estava doente, o quanto estava afetado, e o peso da sua consciência parecia cair sobre si mesmo. Quando afundava o peso do seu corpo sobre os joelhos, envergando-se, era como um “C”, um “C” de carência, e se curvando mais um pouco, formaria um “S”, um “S” de solidão, sucumbindo com o corpo, a sua consciência.

Apesar de guarnecer-se da presença de inúmeros amigos, e de milhares de pessoas, em vários ciclos diferentes que conhecia, não eram o suficiente para tapar o vazio grandioso que inflava no seu ser. Não que tais pessoas não lhe fossem importantes, mas elas somente não seriam capazes de lhe cobrir o vazio, no mínimo, gerariam-lhe um sopro na cavidade que ecoaria até o fim da sua existência, e até essa se aproximar, tornar-se-á cada vez mais obscura, mais impregnada de movimentos devastadores, mais insólita, mais solitária. E isso lhe parecia tremendamente horrível, tremendamente desesperador, infortunar-se desse modo, provar do sabor de viver com tantas pessoas diferentes quanto ele, sabendo que cada uma delas parecia-se com si, via numa a sua crueldade, noutra o justo, noutra a simpatia, noutra ainda o amante inveterado que era, e o pior de tudo era saber que todas elas tinham algo em comum com ele, mas, entretanto, cada uma delas vivia em paz com a sua própria personalidade, enquanto ele que podia ser tudo isso, pois podia ser quem quisesse e ainda assim era sozinho, e ainda que vivesse com essas pessoas e mais duas ou três gerações sucessoras a essas, estaria da mesma forma corroendo-se com o sentimento de vazio, sentindo amargamente a solidão, que criatura nenhuma no mundo poderia conhecer melhor do que ele, tão bem quanto ele, pois se podia dizer que ele é a própria solidão, mesmo com todo o burburinho, com todo o movimento, e se ele aqui tivesse um nome, ao procurar-se o significado para solidão no dicionário lá estaria estampado o seu nome naquela confusão de palavras. E se Sheakspeare ou até mesmo Virginia Woolf quisessem descrever tal sentimento, poupariam suas melodiosas e bem dizidas palavras substituindo-as pelo nome dele, que aqui não há de existir.

Bem que por diversas vezes tentou se livrar da doença, mas o seu estado de espírito não lhe permitia, a fugacidade com que mudava de opinião, isso tudo lhe absorvia; e via na tarefa mais simplória, mais ínfima, um tormento, pois se sensibilizava com quase tudo, e podia ser quem quisesse, e isso o magoava profundamente porque tudo o que tentava era se desvencilhar das oscilações e de não saber se decidir. Pois se ponha a imaginar o quanto é comum escolher carne ou peixe para o jantar, e para ele, que podia ser quem quisesse, e conhecia de quase todos os sabores, e quase todos os odores, era um tormento.

Sabia que não tinha cura para a sua doença, porque não haveria uma cura para crise de existência, e quando se toma conta disso, quando se sabe que não há cura nem razão para questões existenciais, torna-se tortuosa a vida. Do que adianta ser o que eu quiser, se no fim não hei de sanar-me com uma cura, um antídoto, um alívio, a calma... – pensava o homem mergulhado no seu engodo, mergulhado no seu miasma.

E por fim, estava certo. Porque ser o que se quiser ser, se no fim não há uma razão, não há uma explicação racional, um cálculo que determina a vida - a vida é composta de tantos por centos de matéria, de coisas intangíveis, de sentimentos, de moral, de pudor, disso e daquilo e daquilo mais. Não, não é assim, a vida é muito mais complexa, é muito mais além, é uma incógnita, um paradoxo, um momento que se tem uma única vez, que pode durar apenas um dia, meia-hora ou cem anos, mas de qualquer forma, todo esse tempo é magnificamente igual, o viver, o existir, isso sim é verdadeiramente o sentido da simples permanência. Ah, pobre do homem, pobre do homem que como esse, esteja disposto a ser o que queira e que ainda tente descobrir razão da vida.