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19 janeiro, 2007

A dor de existir

Pintura de Korneev Arkadiy

Podia ser quem quisesse. Um poeta apaixonado, que escrevia por horas a fio sobre sua amada, uma criança que falava e agia debilmente, um homem que se atazanava em seus próprios conflitos, a própria elegância e cortesia, ou ainda um fracasso. Ele só não podia ser uma só coisa interinamente. Oscilava como o tempo, que em suas frações menores que milésimos, mais infames que milésimos, faz um camaleão incorporar todas as cores do mundo, o vento mudar de direção, e um pensamento vagar de um canto a outro do cérebro.

Notava-se um distúrbio no homem, sim, tinha caráter, sim, era digno, mas algo o afetava. Sofria com tamanha facilidade, sensibilizava-se com quase tudo, que por qualquer motivo aparentemente tolo, como o desabrochar de um girassol, provocava-lhe lágrimas; embora por instantes se fizesse sisudo e severo. Tinha bom senso de humor, ótimo senso de humor, podia irradiar vendo um cachorrinho auferir-lhe gracejos, mas de vez por outra, dominado pelo tempo e suas conseqüências, no meio de um largo sorriso suas maçãs se lavavam de um líquido choroso, que, todavia não eram alegres, não, não eram alegres. Tinha um distúrbio e o tempo evidenciava-o cada vez mais.

Mesmo assim, com toda a crise, com todas as oscilações, podia ser quem quisesse, o poeta e o menino, a elegância e o fracasso, e uma atmosfera de miasma se instalava, contaminando tudo à sua volta, e para tanto só bastava-lhe imaginar. E ele, pobre homem, o homem que podia ser quem quisesse, sofria com as suas oscilações. Porque no fundo do seu âmago não suportava ser quem era, e com um suspiro enfadonho, e um pesar no semblante, com os cantos tortos da boca, desabafava para si mesmo e para os móveis encobertos de sombra como ele:

- Por que não hei de ser normal, por que não ignorar metade das coisas que se passam, e só se preocupar verdadeiramente com pelo menos dez por cento da outra metade?

Dizia isso como se fosse para diminuir a sua carga, mas só conseguia perceber o quanto estava doente, o quanto estava afetado, e o peso da sua consciência parecia cair sobre si mesmo. Quando afundava o peso do seu corpo sobre os joelhos, envergando-se, era como um “C”, um “C” de carência, e se curvando mais um pouco, formaria um “S”, um “S” de solidão, sucumbindo com o corpo, a sua consciência.

Apesar de guarnecer-se da presença de inúmeros amigos, e de milhares de pessoas, em vários ciclos diferentes que conhecia, não eram o suficiente para tapar o vazio grandioso que inflava no seu ser. Não que tais pessoas não lhe fossem importantes, mas elas somente não seriam capazes de lhe cobrir o vazio, no mínimo, gerariam-lhe um sopro na cavidade que ecoaria até o fim da sua existência, e até essa se aproximar, tornar-se-á cada vez mais obscura, mais impregnada de movimentos devastadores, mais insólita, mais solitária. E isso lhe parecia tremendamente horrível, tremendamente desesperador, infortunar-se desse modo, provar do sabor de viver com tantas pessoas diferentes quanto ele, sabendo que cada uma delas parecia-se com si, via numa a sua crueldade, noutra o justo, noutra a simpatia, noutra ainda o amante inveterado que era, e o pior de tudo era saber que todas elas tinham algo em comum com ele, mas, entretanto, cada uma delas vivia em paz com a sua própria personalidade, enquanto ele que podia ser tudo isso, pois podia ser quem quisesse e ainda assim era sozinho, e ainda que vivesse com essas pessoas e mais duas ou três gerações sucessoras a essas, estaria da mesma forma corroendo-se com o sentimento de vazio, sentindo amargamente a solidão, que criatura nenhuma no mundo poderia conhecer melhor do que ele, tão bem quanto ele, pois se podia dizer que ele é a própria solidão, mesmo com todo o burburinho, com todo o movimento, e se ele aqui tivesse um nome, ao procurar-se o significado para solidão no dicionário lá estaria estampado o seu nome naquela confusão de palavras. E se Sheakspeare ou até mesmo Virginia Woolf quisessem descrever tal sentimento, poupariam suas melodiosas e bem dizidas palavras substituindo-as pelo nome dele, que aqui não há de existir.

Bem que por diversas vezes tentou se livrar da doença, mas o seu estado de espírito não lhe permitia, a fugacidade com que mudava de opinião, isso tudo lhe absorvia; e via na tarefa mais simplória, mais ínfima, um tormento, pois se sensibilizava com quase tudo, e podia ser quem quisesse, e isso o magoava profundamente porque tudo o que tentava era se desvencilhar das oscilações e de não saber se decidir. Pois se ponha a imaginar o quanto é comum escolher carne ou peixe para o jantar, e para ele, que podia ser quem quisesse, e conhecia de quase todos os sabores, e quase todos os odores, era um tormento.

Sabia que não tinha cura para a sua doença, porque não haveria uma cura para crise de existência, e quando se toma conta disso, quando se sabe que não há cura nem razão para questões existenciais, torna-se tortuosa a vida. Do que adianta ser o que eu quiser, se no fim não hei de sanar-me com uma cura, um antídoto, um alívio, a calma... – pensava o homem mergulhado no seu engodo, mergulhado no seu miasma.

E por fim, estava certo. Porque ser o que se quiser ser, se no fim não há uma razão, não há uma explicação racional, um cálculo que determina a vida - a vida é composta de tantos por centos de matéria, de coisas intangíveis, de sentimentos, de moral, de pudor, disso e daquilo e daquilo mais. Não, não é assim, a vida é muito mais complexa, é muito mais além, é uma incógnita, um paradoxo, um momento que se tem uma única vez, que pode durar apenas um dia, meia-hora ou cem anos, mas de qualquer forma, todo esse tempo é magnificamente igual, o viver, o existir, isso sim é verdadeiramente o sentido da simples permanência. Ah, pobre do homem, pobre do homem que como esse, esteja disposto a ser o que queira e que ainda tente descobrir razão da vida.


Um comentário:

Anônimo disse...

Gostaria de escrever algo assim à sua altura...mas, não tenho todo esse q.i. ... rs.. quero q saiba q tenho muito orgulho de conhecer e ter presente na minha vida uma pessoa tão talentosa como você, que tem o dom de transformar em palavras, os anseios, alegrias, sentimentos q todos nós temos. Saiba tb q aprendi a te amar, meu companheiro de todas as tardes..rs..amar assim, do jeitinho q vc é...senão, não seria o my endless Toinho, minha alma gêmea de niver e de coração. Conte sempre comigo..adoro te ver sorrindo,dançando,cantando a sua mais nova invenção.. rs .. amo-te ass: Toinha