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19 janeiro, 2007

Ofélia

Assim como Ofélia, seu cenho refletiu tristemente na água. Refletiu sua dor nas águas correntes de um velho rio pardacento. A sua imagem fora carregada de onde se originou, junto com ela, uma lágrima de sangue, que transformou a densidade marrom do rio em um volume escarlate.

Lá adiante, na desembocadura, explodia o crepúsculo vespertino tingindo o céu de laranja. O mar imensamente azul abrigava cardumes multicoloridos que atiravam júbilos feixes de amarelo-lilases contra o crepúsculo que tinha como companhia o chilrear alegre dos pássaros brancos.

O rio corria veloz como um golfinho em direção ao mar. Em pouco tempo o seu leito encarnecido alçaria a grandiosidade do mar azul, o crepúsculo e os pássaros.

Na praia, passeava uma criatura esplêndida.

O mar envenenou-se do rio, suas águas se misturaram e adquiriram um tom de roxo, e depois púrpura e depois de um azul tão intenso que a imagem do homem chorando sua dor saltou da água para o crepúsculo, que outrora irradiava em felicidade.

Catando conchas e pedras na areia mais branca imaginável da praia, até mais branca que os pássaros cantores, uma jovem mulher, de uma palidez robusta, cabelos negros e esvoaçantes como uma brisa, tomou-se pela imagem entristecedora. Sentiu compaixão e condescendência daquela criatura e fez da dor da imagem a sua própria, e franziu o seu cenho assim como o homem choroso o fez.

Sentiu-se ligada ao homem de alguma forma. Quando o avistou, já sem esperanças, pois era muito claro perceber isso, em seus olhos de desdenho, na insipidez da sua cor, nas rugas que formavam caminhos de lamúria em sua tez. Carecia de compaixão, decerto não era feliz, decerto não possuía um amor.

A mulher em seu desenho lapidado, pois não haveria de existir criatura tão formosa quanto ela, soube desde o primeiro instante o que aconteceria, e atormentou-se, e chorou do mesmo sangue, e sentiu a mesma dor, e pediu compaixão e implorou condescendência do seu amor por ela, e não perdeu as esperanças mesmo sabendo que o seu suposto amante teria se entregado ao infortúnio.

Quando a primeira gota do mel coronariamente vermelho desprendeu-se dos seus olhos, os pássaros de chilrear melodioso e não tão brancos quanto a areia da praia, e os cardumes que incendiavam em sua própria luz, e o crepúsculo que transbordava em energia, entristeceu-se, dessaturou, tudo foi indiscutivelmente dissolvido por um tom acinzentado, exceto o encarnecido do sangue, que beijadas pelas ondas cinzas do mar transferiu sua cor. Agora o mar era vermelho, o mar que era azul. E o rio tingido de vermelho desembocava, o rio que outrora fora pardacento.

Soube quando derramou seu sangue que o homem tinha se atirado contra o rio, era como se o seu sangue fosse o caminho dele para o infortúnio, isso a preencheu amargamente de fel, e fê-la sentir o gosto de sua decadência na boca. Sabia, mas não compreendia porque razão amava-o e que por toda a vida esperou o momento do encontro. Sabia também que ele desistiu do seu amor, que não suportou esperar e atirou-se ao rio, e a mulher, que lamentava tudo isso, foi calcada por uma dor que não se assemelhava ao sentimento do mundo.

O homem foi tomado pela correnteza do rio, apático, não auferia nenhuma reação, estava completamente envolto, submerso. Vez por outra, a virulenta correnteza do rio na sua mais intensa vermelhidão transportava-o para a sua superfície, quando podia respirar, mas esse ignorava a circunstância e inerte poupava qualquer esforço.

A amante sobressaltou-se, como num estalido, e atirou-se ao mar acreditando sofregamente que salvaria seu amado antes que esse alcançasse as águas do mar, pois essas, revolviam-se enfurecidas, as ondas infestadas de violência varriam as conchas e pedras da beira-mar. E a mulher, ou a amante, nadava exaustivamente - imaginava ser ela mesma um peixe esguio, que num leve movimento de barbatanas movia-se de um ponto a outro sem dificuldades, ou uma embarcação, que apesar do agito do mar atravessava-o sem o menor esforço.

Nadava, nadava, nadava relutantemente; nadou aproximadamente meia-hora e percorreu uma distância inferior a quinhentos metros. Estava obstinada a salvar a sua metade perdida que precipitadamente atirou-se às profundezas do rio sem a esperança de completar-se.



Um turbilhão de água, como se o mar possuísse uma rolha, atingiu a mulher que agora submergiu e com toda a sua força tentou voltar à superfície, lutou ali por mais de meia-hora, que lhe pareceu uma eternidade, e quando conseguiu enfim ver o crepúsculo dessaturado, encontrou morto o seu amado.

Chorou toda a sua mágoa e fracasso. Chorou até o mar - que um dia encobria-se e intumescia-se de azul, que abrigava cardumes multicoloridos e peixes voadores, acompanhados do brilho esplêndido da explosão crepuscular e dos cantos dos pássaros chilreantes - tornar-se deserto. E até o seu sangue que esvaia como uma cachoeira tornar-se rocha, e até tudo se dissolver completamente estando apenas no mundo ela e o seu amante morto envolto em seus braços.



Um comentário:

Anônimo disse...

Simultaneidade

- Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver!
- Você é louco?
- Não, sou poeta.

Das Utopias

Se as coisas são inatingíveis... ora!

Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas



Sinônimos

Esses que pensam que existem sinônimos, desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor.

O Poema
O poema essa estranha máscara mais verdadeira do que a própria face.

(Mário Quintana)

Saudades eu sinto de ti :(